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Quem faria o almoço grátis para a IA?

A inteligência artificial consome conteúdo humano sem remunerar, ameaçando criadores e a internet livre. Entenda por que isso nos afeta!

Avatar do(a) autor(a): Thiago Ayub - Colunista

11/08/2025, às 19:00

Quem faria o almoço grátis para a IA?

A Rosie dos Jetsons (1962), o HAL 9000 de Kubrick (1968), a Skynet do Exterminador do Futuro (1984), o Oráculo em Matrix (1999) e o JARVIS do Homem de Ferro (2008). Gerações diferentes tiveram o mesmo sonho que hoje chamamos de Inteligência Artificial (IA): softwares interagindo conosco como se humanos fossem, respondendo às nossas perguntas e trabalhando por nós. E quem trabalhará para a IA?

ChatGPT, Grok, Gemini e Perplexity parecem ser muito inteligentes. É difícil vê-los jogar a toalha, responder que não sabem a resposta. Eu diria que também são dotados de uma Vergonha Artificial (VA), pois tendem a alucinar (inventar) uma informação em vez de assumir que não sabem. 

Uma caricatura adequada para eles seria a de um papagaio de memória infinita que seja craque em estatística: são habilidosos em repetir padrões e memorizar respostas. Assim como o papagaio não inventou o hino do Flamengo ou o assobio como forma de assédio, tudo que as LLMs sabem aprenderam com algum humano. Fiu-fiu!

Para aprender, essas IAs engoliram a maior quantidade possível de conteúdo criado por humanos via internet para formar sua memória. A fome parece ser insaciável: não só apelaram para a pirataria como mesmo diante de ferramentas de bloqueio dessas varreduras, há acusações de burla desses mecanismos para obter acesso ao conteúdo de qualquer forma, mesmo contra a vontade de seus autores. Embora a Inteligência Artificial seja mais conhecida por beber do que por comer, isso me faz te perguntar: quem faria o almoço grátis para a IA?

Na entrada dos saloons do velho oeste dos EUA no final do século 19 dois itens eram facilmente encontrados: a típica porta dupla do tipo vai e vem e um cartaz dizendo “Free Lunch” (almoço grátis). A estratégia comercial era simples: para quem consumisse as bebidas pagas o almoço era grátis. 

Porém, elas tinham o preço mais elevado do que o usual, representando muitas vezes um custo efetivo total superior. O cliente pagava caro enquanto sentia que levava vantagem como um Gérson. É por isso que os livros de Economia nos ensinam que não há almoço grátis.

O mecenas da Sociedade da Informação é a publicidade. Todo conteúdo que você se acostumou a consumir sem pagar pela internet não é de graça. É patrocinado por anunciantes. A página onde você lê essa minha coluna tem mais banners do que eu gostaria, mas eles são necessários para que esse texto exista. 

O Gemini me diz que a cada 10 banners vistos numa página como essa, este site será remunerado em apenas cinco centavos de real. Do seu lado da tela você pode estar me lendo sozinho, mas do lado de cá, para manter esse site, existem dezenas de profissionais num prédio em São Paulo das mais diversas especialidades. O último podcast ao vivo que participei no TecMundo falando sobre soberania digital ocorreu graças ao patrocínio da Kaspersky e sem ele não teria ocorrido.

É aqui que a cadeia produtiva de conteúdo é rompida: se tudo que as IAs sabem foi produzido por humanos, se quem custeou essa produção foi a publicidade, por que novos conteúdos seriam produzidos se as IAs os entregam sem fazer com que a remuneração chegue ao criador? Lembre-se que não há almoço grátis: a produção de conteúdo parará e as IAs se tornarão progressivamente burras.

Esse desequilíbrio ecológico entre produção e consumo de conteúdo atingirá a todos, não apenas os veículos de comunicação. Tanto os YouTubers, Tiktokers e Instagrammers que por hobby entregam conteúdo na sua área de paixão como os diversos médicos, advogados, programadores, psicólogos, professores etc. que falam de sua profissão serão afetados 

Eles produzem conteúdo gratuitamente em troca da visibilidade com a expectativa de que esta lhes traga oportunidades de trabalho. Se você perguntar para uma IA como fazer um morango do amor e ela te responde diretamente, por que uma culinarista publicaria um vídeo ensinando a receita se ninguém mais o verá?

Estamos em rota de colisão entre uma IA que ficará cada vez mais burras pela falta de conteúdo novo e usuários cada vez mais burros pelo uso frequente dessa tecnologia. Os investimentos das fabricantes de IA em lançar browsers é um acelerador da destruição da internet. Por força do hábito chamarão o que sobrar de internet, mas pouco se assemelhará ao que inventamos como rede livre, aberta e mundial.

A pergunta “JARVIS, qual é o voo mais barato para ir à Fortaleza nas minhas férias?” terá como resposta realmente o voo mais barato no meu melhor interesse ou no melhor interesse da companhia aérea que pagou mais pela publicidade velada nessa IA?

A resposta pontual a uma pergunta em vez de um cardápio de várias opções impedirá que o usuário conheça todas as alternativas. Não teremos mais resultados de pesquisa orgânicos no final do pódio, logo depois da pole position dos resultados de tráfego pago. Potencialmente, tudo que se verá na internet mediada pela IA será somente tráfego pago.

A atividade pesqueira é vetada de novembro a fevereiro no que a lei brasileira chama de período de defeso. Nessa época, os peixes estão se reproduzindo e a retirada de fêmeas reduziria a população até a sua extinção. Se o internauta continuar financiando a pesca predatória de conteúdo das IAs, não sobrará conteúdo de qualidade para se consumir. 

Obrigado, caro leitor, por financiar a resistência lendo esta coluna feita por um humano. Se dependermos do HAL 9000, da Skynet ou da Matrix, viraremos pó ou baterias.



Ayub é testemunha ocular da chegada da internet no Brasil: em 1995 acompanhou a transformação dos BBS nos primeiros provedores discados e desde então atua na operação e engenharia provedores, data centers e mitigação de DDoS. É colunista de tecnologia, professor de biologia (isso mesmo que você leu), e diretor de tecnologia. Nos últimos anos tem atuado como liderança técnica de provedores de internet e data center nas Américas.

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