Sekiro muda tônica Soulsborne e cria novo paradigma na curva de aprendizado

Por Lanna Solci

03/04/2019 - 05:018 min de leitura

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Confesso que, à primeira vista, Sekiro: Shadows Die Twice me transmitiu um semblante inocente. Narrativa centrada, 100% offline, cenários que raramente se perdem, convidativos e intuitivos...botão de pulo, com direito a rebote na parede, uso do gancho, possibilidade de se agarrar em beiradas, saltitar de telhado em telhado e por aí vai. Elementos que, duas gerações atrás, já seriam vistos com bons olhos.

Ousada, a FromSoftware, em Sekiro, se aventurou um pouco além das raízes que a construíram – e toda boa ousadia merece um olhar compenetrado de atenção. Ela já havia falado sobre as mudanças que o game apresentaria em mais de uma ocasião; há uma tentativa de tratamento mais “universal” aqui, uma maneira mais palatável de saborear sua receita visceral e masoquista, mantendo-se, é claro, na essência que fez do “Souls-like” um gênero próprio.

É com essa visão mista, sempre aberta a uma nova ótica, que Sekiro: Shadows Die Twice se apresenta. Este review é uma extensão do que fiz na análise em progresso, agora com a jornada devidamente concluída e, portanto, com um veredito formado. Esse conto do período Sengoku, no Japão Feudal, é mais homérico do que você imagina – e, se você gosta de “curtir a dor”, como diz meu dentista, a aventura se torna ainda maior. Também não deixe de conferir o nosso "Tudo que você precisa saber sobre Sekiro: Shadows Die Twice" aqui.

Confira a videoanálise:

Narrativa centrada e bem apresentada

A narrativa centrada de Sekiro deu ao jogo identidade própria, menos vítima das inevitáveis comparações com Dark Souls e Bloodborne. É como se a FromSoftware tivesse pensado: “Poxa, vamos de novo apostar numa história subjetiva contada apenas em diálogos e descrições de itens?”. Ela quis ser mais hospitaleira e expandiu, a todo o planeta, o convite à loucura, que aqui é muito mais pé no chão do que em qualquer outro de seus títulos, sem se esquecer da atmosfera de mistério que permeia seus projetos.

Sekiro significa “Lobo de um braço só”, um Shinobi – termo em japonês para um ninja homem – que não cai na velha premissa da busca por redenção, tão comum em qualquer narrativa atual. Trata-se de uma missão de resgate, em que o Lobo jurou proteção a um jovem lorde e falhou em cumprir a promessa. Como consequência, o protagonista teve seu braço esquerdo decepado e foi deixado à deriva.

É quando a versão prostética (que carinhosamente gosto de classificar como “braço biônico”) substitui o tecido de carne e osso – com mais osso, na verdade, e uma série de recursos aos moldes do Inspetor Bugiganga (aliás, certamente houve alguma inspiração na obra).

Isso é tudo que você precisa saber para não ter spoilers.

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Mudanças no sistema de progressão e um sereno toque de minimalismo

Não sei se é defeito ou qualidade, mas tenho uma característica nos games que, às vezes, rebate mudanças ou, na mesma proporção, as abraça com muita ternura: puritanismo. Como um adepto do Souls-like, almejo mais que uma experiência difícil; espero uma curva de aprendizado lenta, punitiva, contornável por meio da habilidade do jogador e, é claro, de sua capacidade em aprender e farmar pontos para ficar mais forte – se prepara: essas asinhas foram cortadas em Sekiro.

Eu repudiava a fórmula Souls. Mas, quando a ficha finalmente caiu, foi uma epifania. Entendê-la é algo transformador. Nioh, a uns 110 km/h, foi a grande porta de entrada para mim. Depois vieram Dark Souls 3, a 60 km/h, e Bloodborne, o favorito, a uns 80 km/h. The Surge, Lords of the Fallen, Salt and Sanctuary e Ashen complementam o meu pacote. Aliás, para quem nunca experimentou essa fórmula, recomendo a overdose. Ou você pode começar por Sekiro, que se propõe a ser mais didático. E talvez corra a uns...90 ou 95 km/h.

Não há sensação de estar exatamente "mais forte”, apenas mais habilidoso. Não há farming. Você tem que ficar bom e ponto final

A faceta RPG está quase nula aqui. O que temos é um jogo quase que 100% de ação, com as exigências mínimas do gênero: árvore de habilidades, modificações nos golpes, efeitos passivos e coisas do tipo. A estrutura é mais simples e minimalista; não há almas ou ecos de sangue a serem coletados nem desenvolvimento de atributos categorizados ou customização de armaduras, roupas e afins.

Seu personagem não tem nível. Logo, o senso de progresso e evolução dele é diferente. O jogo confia mais na sua competência em manusear os golpes do que na sua capacidade de farmar e ficar mais forte – as habilidades não necessariamente te deixam mais forte, apenas ampliam seu leque de golpes e oferecem bônus básicos, como aumento do poder de cura, visibilidade quando agachado e outros.

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Sem subir de nível: você tem que ficar bom e ponto final

Não há sensação de estar exatamente "mais forte” em Sekiro, apenas mais habilidoso. O XP acumulado gera pontos que são trocados por habilidades ativas e passivas. Esse é o jeito de se sentir mais poderoso; o impacto é menor. Os fãs podem ficar divididos com essa nova faceta que a FromSoftware imprimiu no sistema de progressão. Toda mudança tem um fundo de nobreza, mas isso não necessariamente se converte em ponto positivo. Aqui, fico neutro.

Mas é óbvio que há como aumentar sua vitalidade, seu ataque e sua postura – que é um conceito equivalente ao da stamina, só que mais “reativo”. Para isso, é preciso coletar um item específico, que só é dropado de chefes, subchefes e, vez ou outra, encontrado em alguma passagem secreta oriunda de Tenchu, geralmente naquelas paredes giratórias que se camuflam ao ambiente – quase uma parede ilusória de Dark Souls, se você preferir.

Você não consegue, portanto, aumentar sua força e sua defesa farmando, e sim coletando esses itens, seja em exploração ou após uma exaustiva batalha contra um chefe ou subchefe específico. É um aspecto dependente do seu avanço. Lembra que falei em ter “asinhas cortadas” no início desta análise? Pois bem, é isso. A FromSoftware cria uma anedota do farming e faz a gente sentir falta dele, para bem ou para mal.

O frasco de Estus de Sekiro se chama “Cabaça Curativa”, seu item de cura, que pode ser potencializado e armazenado em maior número se você levar um item específico para Emma, a médica que fica no hub principal da aventura. É ali que também reside o Escultor, uma figura indecorosa que serve como ferreiro, o cara responsável por incrementar o braço prostético do Shinobi.

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Stealth à la Tenchu – BEM Tenchu, na verdade

Por mais que eu quase esteja berrando num trombone “parem com essa obsessão com Tenchu!”, a verdade é que Sekiro respira Tenchu em grande parte de sua concepção geral, desde o foco em stealth até as travessias verticais, o uso dos telhados, a possibilidade de escutar conversas alheias e até – pasmem – a animação do sangue esguichando do pescoço de um oponente. Convido-os a conferir qualquer gameplay do primeiro Tenchu e constatar isso por conta própria. Para quem não sabe, a FromSoftware participou do desenvolvimento do clássico.

Hidetaka Miyazaki, a mente por trás de Dark Souls, Bloodborne e agora Sekiro, chegou a dizer que, em estágios iniciais de desenvolvimento, o jogo seria um novo Tenchu. A coisa deve ter evoluído a tal ponto que, com todas as alterações ao longo do projeto, seria mais assertivo mudar de nome e assumir logo uma nova IP – mantendo-se, dessa forma, como uma espécie de substituto espiritual de Tenchu.

Os diálogos por vezes são vagos, mas importantes para compor o contexto geral do jogo e sugestionar o jogador – o mesmo charme de Dark Souls e Bloodborne

Os arbustos, que se tornaram o arroz com feijão para ocultar sua presença diante dos olhos de inimigos, estão distribuídos em doses homeopáticas pelos cenários, que geralmente oferecem quantidades generosas de adversários, também espaçados estrategicamente. É possível encostar em paredes, alcançar as beiradas e olhar, de soslaio, a movimentação dos oponentes para planejar um ataque furtivo. Esse não é um território desconhecido para a FromSoftware.

Ao se esgueirar numa beirada de telhado, apertar o botão de pulo sem querer pode resultar em morte. Aliás, você precisa acionar um comando para que o Shinobi estique os braços e se pendure numa beirada, como um boneco de Playmobil mesmo. Uma coisa meio...Play 2, sabe? E isso não é ruim, é apenas um ensaio do minimalismo que Sekiro se propõe a ter.

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A título de curiosidade, o protagonista fala! Os diálogos por vezes são vagos, mas importantes para compor o contexto geral do jogo e sugestionar o jogador – o mesmo charme de Dark Souls e Bloodborne, com claras referências a esses jogos, principalmente em conversas feitas às escuras numa janelinha duvidosa.

Combate intimista e punitivo

O combate é onde Sekiro mais brilha. No começo, há uma falsa impressão de velocidade. Essa ilusão se traduz em peso; cada investida tem uma fração de intervalo que, se mal calculado, pode resultar no tradicional golpe letal que é cartão-postal da FromSoftware.

Em Sekiro, há uma combinação de mecânicas. Os golpes são cadenciados, mais que Nioh e menos que os Souls, ligeiramente mais velozes que os de Bloodborne. Requerem que você faça uma previsão certeira do movimento adversário e mescle defesa com esquiva para aplicar o almejado parry, aquele exato instante em que você defende no contato do inimigo e as estrelas se alinham para um contra-ataque visceral.

Revidar exige reflexos afiadíssimos. Você precisa jogar Sekiro concentrado, tentando não transpirar no controle, calmo e paciente, olhando para a tela como um felino, sem piscar, esperando o momento certo do abate, focado em quebrar a postura do inimigo para então criar uma abertura e aplicar um golpe finalizador. Alguns oponentes e chefes requerem mais de uma finalização.

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O segredo (ou charme, se você preferir) para conseguir um parry é mesclar esquivas com defesa num timing impecável, calculadíssimo, quase sem margem de erro. Basicamente, você precisa “cansar” seu inimigo e, portanto, precisa ser agressivo também. Dar porradinhas e recuar é uma técnica que pode funcionar, mas leva o triplo de tempo para derrubar o seu rival. O jogo não quer que você faça isso; ele não foi feito para fujões.

É fácil achar que há um refresco pelo fato de se estar na pele de um Shinobi que consegue pular e usar um gancho. Doce engano. A FromSoftware equilibrou sua rapidez com inimigos que também são mais sagazes e te perseguem feito carrapatos num vira-lata. Esse sentimento de superioridade é apenas uma ilusão que dá lugar ao bom e velho masoquismo do estúdio.

A famigerada mecânica de ressurreição parece até uma ironia da FromSoftware, como se ela tirasse sarro do próprio sadismo que criou em seus jogos, em que a morte sempre foi uma constante: “Olha, você pode voltar à vida, mas isso significa que vou te ferrar nisso, naquilo e naquele outro, tá bom?”. É como se ela fizesse uma metáfora da morte e a personificasse no próprio jogador, dando a ele aquele iminente sentimento de frustração – mas também aquela massagem psicológica após derrotar um boss na sétima tentativa. Tudo isso está em Sekiro.

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Punições rigorosas

Com a possibilidade de ressurreição, a morte ganhou novo significado em Sekiro e esse foi um ponto-chave da divulgação do jogo. O castigo é severo: se você morrer e não usar a ressurreição, perde metade da barra de XP do próximo ponto de habilidade E metade do dinheiro. Isso nunca mais é recuperado.

Se você ressuscitar – e isso tem limite, obviamente –, uma praga se espalha e altera o comportamento de NPCs e de outras coisas no mundo do jogo. Eles contraem um sintoma similar ao de uma tuberculose e, irritadiços, tossem durante as conversas, geralmente em tom de impaciência; há toda uma linha de diálogos alterada por conta disso. É como se um crepúsculo fosse criado em torno do jogador, mais ou menos como os insights (discernimentos) de Bloodborne.

Em Sekiro, cada morte representa uma punição duradoura

Nos outros títulos da FromSoftware, você tem uma chance de recuperar o que foi perdido após morrer. Em Sekiro, não. Cada morte representa uma punição duradoura. Você pode desligar o videogame, fechar o jogo, derrubar a energia da casa inteira, mexer no disjuntor do seu prédio. Morreu, f*deu. E o progresso é salvo na hora, inevitavelmente. Você está algemado a tudo que faz.

Existe uma luz do fim do túnel: o “Auxílio Oculto”. Trata-se de uma chance de escapar desses castigos completamente impune, como se nada tivesse acontecido. O aumento e a diminuição dessa porcentagem estão ligados ao sangue do dragão que circula nas veias do protagonista, mas a origem desse auxílio de outrem é misteriosa – assim como muitos dos NPCs que você encontra no jogo, em becos escondidos ou cantos esquecidos.

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Exploração com verticalidade

O level design, setor que é um talento nato da FromSoftware, favorece os saltos e o uso do gancho, em conceitos mais verticais, inclusive no combate. Portanto, não há tantos atalhos que costumam deixar o jogador boquiaberto ao abrir um portão e perceber que dois lugares distantes foram conectados numa junção brilhante, daquelas que arrancam elogios espontâneos em voz baixa, quando soltamos um “yes” para nós mesmos.

Como Sekiro confia no uso do gancho, esses momentos se tornaram menos frequentes. A equação se justifica, mas, para alguns, pode diminuir aquela sensação gostosa de notar uma conexão tão fantástica a um trecho anteriormente visitado. Quase todos os portões podem ser vencidos pelos seus saltos malabarísticos. Também senti falta das armadilhas, que deixavam cada esquina de Dark Souls e Bloodborne mais tensa. Cavernas e corredores ganhavam outro sentido.

As fogueiras de Sekiro são chamadas de “Ídolos do Escultor”, estatuetas com chamas azuis e semblante de Buda que, como manda a própria filosofia, trazem paz de espírito aos viajantes. É aqui que você mexe em suas habilidades, oferece itens para aumento de vitalidade/postura e melhora o ataque. Aliás, este último aprimoramento funciona da seguinte forma: algumas batalhas contra bosses épicos – os chamados "oponentes extraordinários" – ficam na memória do Lobo e podem ser comungadas no Ídolo do Escultor para aumentar permanentemente o ataque.

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Veredito

A FromSoftware, sempre aberta a uma nova experimentação, quis testar outros horizontes em Sekiro: Shadows Die Twice. Nem todas as decisões podem agradar a todos os perfis de jogadores, principalmente no sistema de progressão, que apresenta grandes mudanças em relação à fórmula Soulsborne tradicional.

O combate também respira novos ares e confia muito mais nos seus reflexos do que na sua capacidade de construir um personagem forte. Sekiro te obriga a ficar habilidoso. É nisso que você deve canalizar sua energia mental. Não há nível de personagem, logo, não há farming/building para evoluir.

Você precisa ficar bom e ponto final. E acredite: alguns bosses são capazes de alterar completamente o seu humor. Abrace a linha filosófica budista, tão discorrida ao longo da jornada, e aprecie esse jogo num estado de espírito “zen”, livre de estresses. Ele não se propõe a aliviar sua barra – e sim agravá-la.

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Sekiro: Shadows Die Twice empacota cerca de 30 horas para quem seguir a rota principal, que tem mais de um desfecho. E sim, o final bom reserva ainda mais conteúdo.

É uma aventura que vai ficar na sua memória por muito tempo. Seja com raiva, com amor ou com uma mistura das duas coisas, você vai dormir pensando em como matar aquele chefe ou atravessar aquele trecho cheio de inimigos espalhados do jeito mais sacana possível. Embora carregue as ressalvas citadas nesta análise, o novo jogo da FromSoftware mostra, mais uma vez, que esse é um estúdio capaz de oferecer novas formas de sair da mesmice da indústria.

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Fontes

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